quinta-feira, junho 17, 2010

A outra esquecida face de África

A Copa do Mundo de Futebol que se realiza na África Sul, para além de ser a primeira vez que tal acontece no continente africano, permite mostrar ao mundo uma importante face dos países da região. É um evento único para que África mostre do que é capaz. Mas África em geral e a África do Sul em particular, tal como os países contíguos, são muito mais do que aquilo que se irá ver nas televisões.

A Copa vai, sobretudo mostrar os sapatos de alta qualidade e design dos africanos que, dessa forma, vão esconder que andam com as meias rotas, tal como vão esconder que milhões de africanos passam fome.

A Copa vai levar aos quatro cantos do mundo as imagens imponentes de um país, de uma região, em progresso, com bons hotéis, boas estradas, bons automóveis. E o resto? Os jornalistas presentes, sendo que todos eles vão ter, pelo menos, três refeições por dia, não vão ter (é claro!) tempo para mostrar ao mundo que, ali ao lado, há milhões de pessoas que nem um prato de comida têm por dia.

Não vão ter tempo para mostrar ao mundo que mais de 800 milhões de pessoas enfrentam a fome diariamente e, a cada minuto, 15 crianças e 15 adultos morrem de fome, muitos dos quais em países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Centrados na Copa do Mundo, os jornalistas vão sempre ter a desculpa de que não têm tempo para mostrar que 1,1 mil milhões de pessoas não têm acesso a água potável em todo o mundo, e que a esmagadora maioria está em África; ou que 2,5 mil milhões não têm saneamento básico; 30 mil morrem diariamente devido ao consumo de água imprópria.

Também não vão ter tempo (é sempre uma boa desculpa para ocultar a incompetência) para mostrar ao mundo que o HIV/Sida já infectou mais de 60 milhões de pessoas e tirou a vida a um terço destas; que a malária mata 2,5 milhões de pessoas anualmente. Instalados nos melhores hotéis, não terão capacidade para também falar que 1,6 mil milhões de pessoas não têm acesso a electricidade, e que a maioria recorre à queima de combustíveis que provocam a poluição do ar e problemas respiratórios.

Virados e vocacionados para o futebol, não dirão ao mundo que, segundo o Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU, cerca de 12 milhões de pessoas poderão morrer de fome em Angola, Botswana, Lesoto, Malaui, Moçambique, Suazilândia, Zâmbia e Zimbabwe se não forem distribuídos um milhão de toneladas de cereais. E entre as declarações de Carlos Queiroz e Dunga não sobrará tempo para dizerem que não faz sentido pedir aos pobres dos países ricos para dar aos ricos dos países pobres. Que não faz sentido enviar para África toneladas de antibióticos, porque estes remédios são para tomar depois de uma coisa que milhões de africanos não têm: refeições.

Ao olharem para as estruturas físicas da Copa do Mundo, os jornalistas vão ficar admirados com a capacidade da África do Sul. E de tal forma isso vai acontecer que vão ficar cegos quanto à realidade que está para além dos estádios de futebol e dos hotéis. Ninguém vai dizer que África está como está (poucos com muitos milhões e muitos milhões com pouco ou nada) porque os líderes africanos de uma forma geral (e nem Nelson Mandela conseguiu pôr ordem na casa) falharam depois das independências em todos os parâmetros da governação.

Em algum lado se dirá que quando nasceram os primeiros Estados africanos independentes, nos anos 50, África estava melhor em termos económicos? Não. Aliás, essas falhas graves (corrupção e similares) não só não provocaram o desenvolvimento e a igualdade como, o que não é menos grave, aceleraram o retrocesso. A culpa não é, está bom de ver, só dos maus líderes africanos. É também do povo que aceitou ser governado por ineptos, mas, sobretudo, do mundo ocidental que sempre olhou para África com a ideia de “quanto pior… melhor”.

Isto porque se os africanos morrem, à fome ou nas guerras, as riquezas (petróleo, diamantes etc.), essas continuam lá. Se a África do Sul, por exemplo, tem capacidade para organizar a Copa do Mundo, porque razão não consegue ter a dignidade de puxar pelo continente para tirar África da suicida dependência do Ocidente?


E se todos concordam que não se justificam a fome, a ignorância e a doença que assolam África, poucos são os que se atrevem a dizer que a solução passa por banir dos governos os políticos corruptos que, ao contrário das teses de Nelson Mandela, não vivem para servir. E se não vivem para servir, não servem certamente para viver.

Mas como é de futebol que o povo (seja ou não africano) gosta, a verdade é que o mundo vai parar para ver a Copa do Mundo. É um ópio que, também em África, fará esquecer a barriga vazia. Depois? Depois virá a ressaca e tudo regressará ao normal. Isto é: à fome, à miséria, à corrupção.

In:
http://www.blogdacomunicacao.com.br/africa-para-alem-da-copa-do-mundo/

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