sábado, maio 07, 2011

A Imprensa e Cabinda

Gay Talese no livro “The Kingdom and the Power” (“O Reino e o Poder”), publicado em 1971, diz que "o papel da imprensa, numa democracia, é atravessar a fachada dos factos”.

Na sessão de apresentação, no Porto, no dia 22 de Outubro de 2008, do livro de Francisco Luemba “O problema de Cabinda exposto e assumido à luz da verdade e da justiça”, os jornalistas portugueses marcaram posição... pela ausência. O mesmo, com raras excepções, se passou em relação à divulgação do evento.

Ausência que, obviamente, foi tema de conversa entre os presentes, a maioria dos quais não compreendia o silêncio da imprensa portuguesa em relação a Cabinda.

- Onde está a sua apregoada tese de que os jornalistas existem para dar voz a quem a não tem? Perguntaram-me alguns.

De qualquer modo, aqui fica mais uma tentativa para explicar o que se passa com uma actividade que, como qualquer fábrica de sapatos, é meramente comercial.

Não existe nas linhas de montagem nenhuma autonomia editorial e, ou, independência. E não existe sobretudo, mas não só, por culpa dos jornalistas que, sob a conveniente (sinónimo de bem remunerada) capa da cobardia se deixa(ra)m transformar em autómatos ao serviço dos mais diferentes protagonistas, sejam políticos, partidários, sindicais ou empresariais.

Basta ver quantos são os supostos jornalistas que, nomeadamente na blogosfera, dizem quem são e mostram a chipala. São muito poucos. A grande maioria prefere o cómodo e barato anonimato. Para que se não saiba que têm as meias rotas nunca se descalçam.

Habituados a viver na selva supostamente civilizada onde, com o patrocínio e cobertura dos poderes instituídos, vale tudo, os chefes de posto das linhas de produção de textos de linha branca entendem que a razão da força, dada por alguns milhares de euros de avenças ou similares, é a única lei. E, digo eu, dos Jornalistas esperar-se-ia que lutassem pela força da razão. Não acontece. Não é de agora, mas agora tem mais força e seguidores.

Força da razão? Claro que não. Até porque em Portugal não existem Jornalistas a tempo inteiro. Na maior parte do tempo útil são cidadãos como quaisquer outros e que, por isso, não precisam de ser sérios nem de o parecer. Nas horas de expediente, sete ou oito por dia, exercem o jornalismo, tal como poderiam exercer o enchimento de latas de salsichas.

Como para mim existe uma substancial diferença entre exercer jornalismo e ser Jornalista, entre ser operário de um órgão de comunicação social e ser Jornalista, tal como exercer medicina e ser médico, continuo a dizer que nesta profissão quem não vive para servir não serve para viver.

E é por isso que Cabinda não é notícia. Uma bitacaia (insecto que se instala sobretudo debaixo das unhas dos pés) no presidente do MPLA teria com certeza muito maior cobertura do que o facto de em Cabinda imperar o terror.

É por isso que os operários dos órgãos de comunicação social lá estão para se servir, para servir os seus capatazes, e não para servir o público, para dar voz a quem a não tem.

Infelizmente os media estão cada vez mais superlotados de gente que apenas vive para se servir, utilizando para isso todos os estratagemas possíveis: jornalista assessor, assessor jornalista, jornalista cidadão, cidadão jornalista, jornalista político, político jornalista, jornalista sindicalista, sindicalista jornalista, jornalista lacaio, lacaio jornalista e por aí fora.

Como diz Gay Talese, cabe ao jornalista procurar incessantemente a verdade e não se deixar pressionar pelo poder público ou por quem quer que seja. Não interessa se as opiniões são do Secretário-Geral da ONU, da Rainha de Inglaterra, do Presidente da República de Portugal ou do “dono” de Angola, de seu nome José Eduardo dos Santos.

Ou, segundo o jornalista inglês Paul Johnston, o jornalismo sério, objectivo e imparcial sabe "distinguir entre a opinião pública, no seu mais amplo sentido, que cria e molda uma democracia constitucional, e o fenómeno transitório, volátil, da opinião popular".

Falar hoje de Cabinda é algo que desagrada aos poderes políticos de Angola e de Portugal, bem como ao poder económico nacional ou global.

Mesmo assim, há coisas a que nem todos podem fugir. Antevendo a eventualidade de o poder militar de Angola calar, com a conivência petrolífera da comunidade internacional, todos aqueles que na colónia de Cabinda lutam pelos seus direitos, uma parte da comunicação social portuguesa tem dado destaque ao caso.

Destaque que, contudo e mais uma vez, passa ao lado das violações dos direitos humanos naquela colónia angolana, de que são claros e inequívocos exemplos as prisões do padre Raul Tati, do advogado Francisco Luemba, do economista Belchior Tati e do engenheiro Barnabé Paca Peso que foram o bode expiatório dos ataques militares, em Janeiro de 2010, contra a segurança angolana à selecção de futebol do Togo que participava, em Cabinda, no Campeontado Africano das Nações.

Mais uma vez, grande parte da comunicação social portuguesa amplia a voz dos donos do poder, na circunstância o MPLA, esquecendo que a sua função básica é dar voz a quem a não tem, neste caso aos cabindas detidos em execráveis condições.

Razões para essas prisões? As que deram e as que darão mais jeito ao regime colonialista angolano. Luanda avançou com a acusação de que aqueles ilustres cabindas punham em risco a segurança do Estado (ocupante), sobretudo porque tinham na sua posse o mais subversivo livro da história da humanidade: “O problema de Cabinda exposto e assumido à luz da verdade e da justiça”, de que é autor o também detido Francisco Luemba.

Recorde-se que o livro em questão, lançado em Portugal (Lisboa e Porto) em 2008 e do qual sou (com honra e orgulho) o autor do prefácio, é uma excelente obra sobre Cabinda que, contudo, não mereceu na altura a atenção dos ilustres cérebros que vagueiam nos areópagos da política e do jornalismo, tanto em Portugal como em Angola.

E se apenas ler é um crime, para as autoridades coloniais angolanas, ler o livro de Francisco Luemba ainda é um crime maior. Mas disso, com raras excepções, não falam os produtores de conteúdos de linha branca que, a troco de um prato de lentilhas, enxameiam as linhas de produção, outrora chamadas de Redacções.

Aliás, os cabindas apenas querem, como escreveu Francisco Luemba, que a questão seja suscitada, discutida calma e serenamente e as responsabilidades apuradas e assumidas sem preconceitos nem caça às bruxas, acusações ou insultos.

Há alguns anos, no limiar do novo milénio, o governo belga apresentou ao Povo da República Democrática do Congo desculpas formais e oficiais pelo seu envolvimento no assassinato de Patrice Lumumba, herói da independência daquele país africano e chefe do seu primeiro governo.

Para Cabinda, não é necessário que Portugal chegue a tanto, embora fosse da mais elementar justiça... caso Portugal fosse um Estado de Direito. Os cabindas apenas querem a verdade. Não só não exigem desculpas, como nem as esperam.

Os cabindas são o único povo do planeta a quem é negado, sistemática e terminantemente, a compreensão, a amizade e a solidariedade. O único povo cujos mais elementares direitos são espezinhados. O único que, contra o direito e a sua própria vontade, é empurrado para soluções extremas, como se o objectivo fosse arranjar um pretexto para eliminar os cabindas da face da terra.

Porque razão os supostos jornalistas portugueses não falaram, não falam, não recordam o que o padre Jorge Casimiro Congo foi dizer ao Parlamento Europeu (Bruxelas), no dia 26 de Janeiro de 2010, a convite da eurodeputada socialista portuguesa Ana Gomes?

O padre Casimiro Congo disse algo que define sublimemente os cabindas e que os angolanos nunca deverão esquecer: “Diante de Deus, de joelhos; diante dos homens, de pé”.

Jorge Casimiro Congo lamentou também a posição do governo português, de condenar apenas o que classificou como um ataque terrorista durante a Taça das Nações Africanas (CAN), afirmando que “Portugal é o ultimo a falar, não deve ser o primeiro a falar”. E porquê? Porque “Portugal é que é o culpado do que acontece em Cabinda. Não nos aceitou, traiu-nos”.

Se as verdades ajudassem a reduzir o défice português, as que foram ditas pelo padre Congo, não só por serem históricas mas sobretudo por serem actuais, o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, estaria bem da vida.

Mas não ajudam. Desde logo porque, da Presidência de República portuguesa ao Governo, passando pelo Parlamento e pelos partidos, ninguém sabe o que é, da facto e de jure, Cabinda. Para quase todos, a história de Portugal só começou a ser escrita em Abril de 1974, ou até mais tarde.

Optimista quanto ao futuro, sobretudo por saber que o seu povo nunca será derrotado porque nunca deixará de lutar, o padre Congo disse ainda ter esperança de que no futuro haja “governos portugueses com mais calma para ver este problema”, porque acredita “que há partidos que começam a levantar a cabeça” e surgirão figuras que fiquem “acima de quaisquer negociatas, de petróleo, ou de mão-de-obra que tem de ir para Angola”.

É claro que não houve nenhuma reacção oficial de Portugal às acusações do padre Congo. Uns porque entendem (e talvez bem) que quem manda em Portugal é cada vez mais o clã Eduardo dos Santos; outros porque entendem que se o MPLA virar a rota e passar a investir noutro lado lá vão ao charco alguns grandes negócios; outros ainda porque se estão nas tintas para a honorabilidade de um Estado de Direito. Estado de Direito que Angola não é e que Portugal é cada vez menos.

In: “Cabinda – ontem protectorado, hoje colónia, amanhã Nação”
Foto: Declarações à Deutsche Welle – Voz da Alemanha, na apresentação deste livro em Lisboa, na Casa da Imprensa.

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