segunda-feira, junho 11, 2012

Se a hipocrisia gerasse empregos…


Os chefes de Estado de Portugal e Cabo Verde mostraram-se hoje preocupados com a degradação da situação económica e social na Guiné-Bissau, reafirmando a sua oposição a qualquer solução que legitime golpes de Estado.

Que Jorge Carlos Fonseca, que apenas está no cargo há nove meses, só agora tenha acordado, ainda vá que não vá. Mas Cavaco Silva, que foi primeiro-ministro  de 6 de Novembro de 1985 a 28 de Outubro de 1995, que venceu as eleições presidenciais de 22 de Janeiro de 2006 e foi reeleito a 23 de Janeiro de 2011, manifesta assim um colossal acto de hipocrisia.

Pelos vistos, tanto Jorge Carlos Fonseca  como Cavaco Silva só agora terão reparado que na Guiné-Bissau nenhum candidato, nenhum presidente, acabou o seu mandato e que em 17 anos o país já teve sete presidentes.

Embora não tenham sido originais, os autores do mais recente (outros haverá, infelizmente) golpe de Estado parecem ser os bodes expiatórios ideais para a ONU, CPLP, Cabo Verde, Angola e Portugal. “Nino” Vieira e tantos outros dirigentes não foram assassinados agora, mas só agora é que a comunidade internacional deu fé de que isso tinha acontecido.

Dir-se-á que mais vale tarde do que nunca. Talvez. Pois é. Foi necessário os militares guineenses dizerem que não estão para ser protectorado de Angola para que, humilhada no seu sentimento de potência regional e dona de Portugal, Luanda puxasse dos galões e desse ordens ao reino português para papaguear uma série de asneiras.

Enquanto os militares guineenses foram fazendo o jogo do regime angolano, mesmo matando presidentes, candidatos, e chefes militares, tudo esteve bem. Quando resolveram pôr em questão o poder de Angola… estragaram tudo.

Luanda mandou, Portugal pôs-se de cócoras (posição também ela nada original) e a CPLP disse que sim ao dono do reino angolano. Juntaram-se e lá foram para Nova Iorque dizer que só agora é que descobriram que os direitos civis, políticos e humanitários estavam a ser violados.

A declaração da ONU, que vem ao encontro do que tem vindo a ser pedido por várias organizações internacionais e Estados que condenaram o golpe, entre as quais a CPLP e o Governo português por ordem de Angola, refere os compromissos que exigem a reposição da ordem no país.

Reposição da ordem no país? Pois é. Agora é preciso repor a ordem. Quando o primeiro-presidente da Guiné-Bissau, Luís Cabral, foi deposto por um golpe de Estado liderado por “Nino” Vieira, em 1980, onde andavam todos estes arautos da legalidade e da reposição da ordem?

Um ano antes de morrer, em 9 de Julho de 2008, Luís de Almeida Cabral considerou que a existência de tráfico de droga no seu país natal constitui uma "vergonha", apelando às autoridades de Bissau para combaterem o fenómeno: "É uma situação muito má. Desejo que as autoridades e o povo guineenses possam combater esta vergonha que não traz nada de bom".

Pois é. Mas nessa altura, também nessa altura, tudo ficou na mesma. E ficou assim, calculo, porque ainda não existiam a ONU, a CPLP, Portugal, Angola ou Cavaco Silva.

Alguém ainda se lembra que, em 18 de Maio de 2009, o  Procurador-Geral da República da Guiné-Bissau, Luís Manuel Cabral, disse que a instituição estava sem dinheiro para continuar o processo de investigação aos assassínios do Presidente 'Nino' Vieira e do general Tagmé Na Waié?

Será que Kumba Ialá tinha razão quando, em 17 de Junho de 2009, acusou o PAIGC de ser responsável pela morte de Amílcar Cabral,  "Nino" Vieira, Tagmé Na Waié, Hélder Proença e Baciro Dabó?

"Carlos Gomes Júnior tem que responder no Tribunal Penal Internacional pelas atrocidades que está a cometer", no país, defendeu nesse dia Kumba Ialá, acrescentando que "há pessoas a quererem vender a Guiné-Bissau", mas esclarecendo que "serão responsáveis pelas turbulências que terão lugar no futuro".

Cavaco Silva e companhia estão preocupados com Carlos Gomes Júnior, exigindo o regresso à normalidade institucional. Quando os EUA, por exemplo, avisaram as autoridades da Guiné-Bissau que o novo chefe das Forças Armadas não poderia estar implicado nos acontecimentos de 1 de Abril (2010), como era o caso do major-general António Indjai, o que fez Gomes Júnior?

Escolheu (e o presidente Balam Bacai Sanhá aceitou) para chefiar as Forças Armadas, nem mais nem menos do que... António Indjai.

Recorde-se que Indjai foi o protagonista dos acontecimentos militares de 1 de Abril e que chegou (embora depois tenha pedido desculpa) a ameaçar de morte o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior.

Cavaco Silva já condenara (13 de Abril) "veementemente o golpe de Estado na Guiné-Bissau”, apelando a uma posição "firme e determinada" da comunidade internacional. Depois passou a dormir descansado e a fazer as contas para saber se a sua reforma dá para pagar as despesas.

O discurso de Cavaco Silva para felicitar Carlos Gomes Júnior como novo presidente da Guiné-Bissau já estava escrito. Se calhar teria apenas alterar o nome. Aliás o texto é sempre o mesmo. Primeiro foi o de “Nino” Vieira, depois o de Malam Bacai Sanhá.

"Tendo tomado conhecimento das suas novas funções como presidente da República da Guiné-Bissau, é com satisfação que endereço a Vossa Excelência, em nome do Povo português e em meu próprio, as mais sinceras felicitações e votos de sucesso no desempenho das altas funções que, de forma tão expressiva, foi chamado a desempenhar, pelo Povo irmão da Guiné-Bissau", dirá certamente a mensagem enviada de Belém a quem vier a ser o dono da Guiné-Bissau.

Neste parágrafo até não foi necessário acrescentar nada. O Vossa Excelência que serviu para "Nino" dá para qualquer um, seja Carlos Gomes Júnior, Kumba Ialá ou António Indjai.

Cavaco Silva sabe (ou não fosse ele um pobre reformado) que civismo e democracia não se conjugam com a barriga vazia, mas esse é um problema dos outros...

"Estou seguro de que o mandato de Vossa Excelência será pautado pela defesa do processo de reforma e consolidação das instituições da Guiné-Bissau, que conta com o firme apoio de Portugal e que constitui uma condição indispensável para assegurar o futuro de paz e de desenvolvimento económico e social a que o Povo da Guiné-Bissau tem direito", escreveu, escreve e escreverá o Presidente português, seja qual for o dono do país.

O Chefe de Estado português irá de novo, sem pinta de originalidade, sublinhar a importância que atribui "aos laços históricos de profunda amizade que unem os dois países e ao reforço continuado da cooperação entre Portugal e a Guiné-Bissau, quer no plano bilateral, quer no quadro multilateral, muito em particular no âmbito da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)".

Pois. Portugal não está (ou pelo menos não parece estar) interessado em ensinar os guineenses a pescar. Vai, no entanto, mandando para lá umas sardinhas. E mesmo estas começam a fazer falta em Portugal, país onde os cidadãos de segunda – a esmagadora maioria – já incluem o farelo na sua dieta alimentar.

"Reiterando-lhe as minhas felicitações, peço-lhe que aceite os votos que formulo pelo bem-estar pessoal de Vossa Excelência assim como pela prosperidade e progresso do Povo irmão da Guiné-Bissau", finalizará o Presidente português.

É isso aí. Votos de prosperidade e progresso de um Povo irmão que continua a ser gerado com fome, a nascer com fome e a morrer pouco depois... com fome (dois em cada três guineenses vivem na pobreza absoluta e uma em cada quatro crianças morre antes dos cinco anos de idade).

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